Apesar dos meus 35 anos de idade, já ando no Mundo há tempo suficiente para não me surpreender com nada, nem mesmo com artigos como o escrito por José António Saraiva, na semana passada, ao «Semanário Sol». 

O artigo, intitulado “Impingir o futebol feminino”, começa assim:

“Abrimos a TV e vemos um anúncio ao futebol feminino – seja o futebol de 11, o futsal ou o futebol de praia. Mudamos de canal e vemos mulheres a dar toques numa bola. Passamos à frente e surge Ronaldo a ser substituído a meio de um jogo por uma tal Jéssica. Interrogo-me: o que se passa? Porquê esta ânsia? Qual o motivo de toda esta propaganda?”

Ora, «a tal Jéssica» está perto de completar 100 internacionalizações por Portugal e já foi campeã europeia ao serviço do Lyon há apenas 2 anos. Talvez se o cronista visse a excelente qualidade técnica desta jogadora pelos flancos, compreendesse melhor a «propaganda» que diz que se anda a fazer. Mas conforme não conhece a «tal Jéssica», tenho a plena convicção de que não faz a mínima da classe evidenciada por uma central como a Diana Gomes, a competência a atacar e defender da lateral Catarina Amado, a forma tão bem feita como Andreia Norton ou Tatiana Pinto organizam os processos de jogo da seleção no meio-campo, ou o virtuosismo técnico de jogadoras fantásticas como Francisca Nazareth, Diana Silva ou Telma Encarnação.

Eis outra citação de José António Saraiva:

“Quando vejo um jogo de futebol feminino arrepio-me ao ver certos choques, ao assistir a lances em que as jogadoras levam violentas pancadas no peito. E pergunto-me: será que não sofrem com isso? Que, no futuro, não virão a ter problemas por causa disso?”

Confesso que quando li esta parte, a primeira coisa grosseira que me passou pela cabeça foi desejar ver este ilustre cronista a defrontar em campo Wendie Renard, Millie Bright, Sherida Spitse ou Irene Paredes… Mas depois pensei: “Coitado do senhor, não lhe desejo assim tão mal, se calhar é melhor passar a mensagem de outra forma”… Sugiro, portanto, uma rápida pesquisa para analisar os problemas de jogadores homens após terminarem as suas carreiras: desde os problemas na cabeça que o lendário ponta-de-lança inglês Alan Shearer diz ter por causa dos mais de mil cabeceamentos que deu nos treinos, passando pelos recentes problemas cardíacos que precipitaram os fins de carreira de Iker Casillas ou Kun Aguero, até aos problemas graves nos tornozelos que acabaram cedo demais com a carreira de Marco Van Basten, há problemas para todos os gostos e em todos os tempos…

E agora vamos a uma terceira, esta uma delícia:

“Não faço ideia se a história é verdadeira. Mas o facto é que, desde esse primeiro jogo, se viu que o futebol é um desporto de grande contacto físico, um jogo ‘viril’ (palavra agora proibida), pouco adequado a pessoas frágeis ou com certas características físicas”

O que quererá o autor dizer com “certas características físicas”? Será que Messi corresponde a este protótipo? Ou Maradona? Ou Pelé? Ou Chalana? Ou talvez Xavi ou Iniesta? Se calhar, José António Saraiva acaba por dar a resposta a seguir:

“Na minha infância, na rua onde vivia, em Belém, havia uma equipa de futebol. De rapazes, naturalmente. Porquê? Porque os pais proibiam as filhas de jogar à bola? É possível que, nalguns casos, isso acontecesse. Mas não era a regra. As meninas não jogavam à bola porque não gostavam desse contacto físico permanente, de levar caneladas, de apanhar com boladas no corpo. Pela mesma razão, os rapazes mais timoratos também não entravam no jogo”

Estranho futebol este, onde as caneladas e as boladas sobressaíam mais do que a arte e a criatividade, e onde os “rapazes mais timoratos (mais tímidos) não entravam no jogo”. Neste futebol do Sr. Saraiva, parece reinar a traulitada e há pouco espaço para a transmissão de valores pedagógicos de superação que marcam a atividade desportiva, na qual todos e todas conseguem encontrar o seu espaço. 

E como a crónica já vai longa, terminamos com uma última citação do Sr. Saraiva: 

“Nos anúncios ao futebol feminino, aparece um slogan do tipo «Futebol sem géneros». E aí percebemos o porquê de tanta propaganda. A promoção desenfreada do futebol feminino não tem nada que ver com desporto, não tem nada que ver com futebol, tem que ver com política. É a ‘ideologia de género’ a funcionar”

Sr. Saraiva, a “promoção desenfreada do futebol feminino” não tem que ver com nenhuma “ideologia de género a funcionar”, mas sim com a qualidade das jogadoras – que grandes exibições de Daphne van Domselaar na baliza dos Países Baixos; que bem mexe Lena Oberdorf no meio-campo da Alemanha; que classe futebolística nos pés de Aitana Bonmatí ou Kosovare Asllani; que grandes momentos nos têm proporcionado avançadas como Klara Bühl ou Kadidiatou Diani; e há tantas outras!

Por mim, está decidido: a partir de agora, acompanharei a par e passo não só o nosso campeonato português e as provas internacionais, como os desafios das ligas espanhola, francesa, inglesa, alemã, italiana, neerlandesa e norte-americana. 

E ninguém precisou de me impingir nada – a qualidade das jogadoras fala por si!

Gonçalo Novais