Como numa maratona e a lembrar os treinos de há mais de quarenta anos, Carlos Lopes desafiou-se e (per)correu uma carreira pintada a ouro. A conquista de Los Angeles completa quatro décadas em agosto. O primeiro ouro olímpico português assume-se um homem de fé e feliz. Garante que nunca chorou nem teve medo de nada no momento delicado de saúde que viveu recentemente. Nesta entrevista, Carlos Lopes revela que não gosta de esperar nem de atrasos, até porque viveu sempre com os tempos em dia.
– 40 Anos desde o ouro olímpico na Maratona. Já passaram quatro décadas. Parece mentira…
– Mas não é. Aquilo mexeu muito com as pessoas. Os portugueses reviram-se. Foi um momento que os portugueses estavam a precisar. Não era só a glória. Era sim, dar uma nova imagem do que são os portugueses. Daquilo que somos feitos.
– O que é que a vitória em Los Angeles mostrou de nós?
– Toda a gente sabia que, naquela altura, havia problemas com os portugueses nos Estados Unidos. Esta vitória deu uma outra visão sobre a qualidade dos portugueses. Mostrou que fazemos obra por onde passamos e às vezes não somos reconhecidos. Aquele momento deu a todos a dimensão de que precisavam. Representei a minha Pátria com carinho, amor e respeito, acima de tudo.
– Aquelas duas horas, nove minutos e 21 segundos ficaram na memória…
– Quando se faz esse tempo, que é recorde olímpico durante 24 anos, é uma marca. Não caiu do céu, não aconteceu por acaso. Foram anos de preparação e de consciência de que tinha capacidade para o fazer o que fiz.
– Antes desta prova há um acidente. Puxando a fita atrás, achou que poderia algo estar em causa?
– A partir do momento que me levantei e percebi que não tinha nada partido, disse não era aquilo que me ia derrubar. Deus estava comigo.
– Sempre foi um homem de fé?
– Sempre. E também sempre soube o que queria.
– Fé esforço e vamos lá. E ganhou. Quando é que percebeu que ia ganhar?
– Quando entrei no estádio completamente isolado, mas a minha consciência sempre me transmitiu essa ideia. Estive sempre focado. Eu treinei, ajuizei, e sabia que era a minha última oportunidade de ganhar.
– Nessa altura lembrou alguém, recordou momentos?
– A única coisa de que me lembro é, depois do tiro de partida, quando fiz uma volta, disse à minha mulher, que estava a assistir, para ir para o estádio que já nos íamos encontrar. Naqueles momentos temos de pensar em ser práticos, olhar todos os movimentos, perceber onde estão os nossos adversários e gerir a nossa força. Preparei a prova para não me distanciar muito. Estavam sete ou oito lançados para a vitória.
– Recuando ainda mais anos, o Fontelo era um dos sítios onde treinava…
– Muitas vezes. O Fontelo dava-me uma saúde e liberdade tremendas. Subir e descer esta floresta deu-me uma capacidade e alento para continuar a fazer aquilo que gostava: fugir dos outros. Eu quando estava mais cansado, ou quando as coisas não me estavam a correr bem, eu vinha de Lisboa para Viseu durante uma semana. E saía daqui novo.
– O Fontelo era terapia?
– Talismã. E foi terapia para me libertar da pressão de Lisboa.
– A pista do Estádio do Fontelo também era especial…
– Quando comecei a correr não tinha a qualidade de hoje. Era de cinza. Correr em terra é uma coisa, em sintético é outra. Aqui foi onde comecei a aprender o que era correr 400 metros, 1000 metros… Foi aqui que ganhei a qualidade que me faltava para poder crescer.
– Com que idade sai de Viseu para Lisboa?
– Com 17 anos. Já tinha sofrido um bocadinho. A minha família era pobre e tínhamos de trabalhar. Éramos oito irmãos. A partir dos 13 anos comecei a trabalhar para ajudar. Numa primeira fase fui assistente de pedreiro. Depois estive numa mercearia e numa ourivesaria. Aos 16 anos fui serralheiro. Depois fui para Lisboa e fiz mais uma quantidade de coisas. É a minha história. O que é importante é que cada um se enquadre naquilo em que se sente melhor.
– Tinha alguma alcunha em criança?
– Era o olho verde. Era a família do olho verde.
– Que sonhos tinha o Carlitos do olho verde? Eram oito irmãos, os vossos pais precisavam de vós. Que sonhos havia?
– Eu primeiro quis ser serralheiro, depois torneio. Sempre fui criativo e isso deu-me horizontes.
– E os seus pais apoiaram-no sempre?
– A minha mãe não gostava muito. Achava que era muito sofrimento. Era uma mãe muito protetora e acho mesmo que nunca me viu correr. Eu quando vinha de Lisboa dizia-me sempre que me achava muito magrinho. O meu pai gostava das minhas qualidades como atleta.
– Eles morreram antes da medalha da Maratona?
– A minha mãe, sim. Viu a medalha de prata (1976, Montreal, nos 10000 m). O meu pai viu e esteve presente em Los Angeles. Eu na altura disse à minha mulher que gostava de ser mosca para estar em Portugal. Gostava de ter sentido. Eu não sou de grandes emoções, mas tenho consciência daquilo que faço.
– Quando se parte para uma prova destas, para além da consciência de que se trabalhou e treinou e de que se pode ganhar, é preciso uma bagagem de apoio familiar. Falou na sua mulher. Sempre esteve do seu lado em todas as horas?
– Sempre. De uma forma simples. Se isso não acontecesse, se colocamos constantemente em dúvida o que temos na nossa retaguarda, não andamos felizes. E eu era feliz.
– Sempre foi?
– Sempre. Sempre fiz o que gostava e gosto da minha família. Quando temos isto, o que podemos querer mais?
– E o amor ao Sporting nasce como?
– Não é de família, mas eu comecei a sentir um carinho especial pelo Sporting por causa de um jogador chamado Seminário, que era um jogador fabuloso. Havia Benfica, Belenenses, e eu disse que tinha de ser do Sporting. E fui. Toda a vida. Quando comecei a praticar atletismo, o primeiro clube a vir ter comigo foi a Académica de Coimbra, mas eu não estava para aí virado. Depois o Anacleto Pinto veio de propósito a Viseu para eu representar o Benfica. O Sporting tinha uma coisa que os outros não tinham: uma escola de raiz com os melhores atletas do país. E isso foi o que me atraiu mais.
– E foi no Sporting que conheceu Moniz Pereira?
– Foi meu treinador e passou – me os valores da amizade, do respeito e da pontualidade. A falta de pontualidade fere-me. Sempre fui pontual. Quando me fazem esperar fico danado. É uma questão de respeito.
– E há o Lusitano de Vildemoinhos. Nasce em Vildemoinhos, tem espírito trambelho. Este clube foi sempre uma das suas paixões?
– Foi o clube que mais encaixou na minha forma de estar na vida. O Lusitano no meu
tempo era feito de malta da terra. E nós brincávamos e jogámos à bola todos juntos.
– Alinhava em que posição?
– Desde que jogasse…Nem que fosse guarda-redes. Perdeu-se um bom futebolista, ganhou-se um grande atleta.
– Atleta que é hoje celebrado na Escola de Atletismo Lusitano Carlos Lopes, em, Vildemoinhos. Esta é uma escola que apoia jovens que querem ser felizes no desporto…
– Um jovem, que não faça desporto é um enfermo para a vida. O desporto é que abre horizontes, que semeia a cultura intelectual e desportiva. Nada melhor que o desporto para a mente dos jovens. Também senti isso desde os 13 anos. Quando a Escola foi criada, eu sempre acreditei que o Lusitano ia abraçar a ideia, Vildemoinhos e Viseu têm muitos jovens com muito talento. Ainda por cima vivem muito mais a natureza do que outros jovens numa outra cidade.
– Passou por um momento delicado de saúde. Hoje está bem?
– Tranquilo.
– Manteve-se sempre otimista. Nunca passou por momentos de desânimo nestes tempos mais recentes?
– Nunca. E sempre quis que me dissessem a verdade. Porque assim sei encarar as coisas. Tenho a noção de que as pessoas se preocuparam comigo, mas também não espalhei o pânico. Eu nasci para vencer.
– Ganhou a Maratona com 37 anos. Hoje com 77, que maratona há por correr na sua vida?
– Queria prolongar o mais tempo possível a minha passagem ao cimo da terra. Não tenho projetos de vida, as coisas vão acontecendo naturalmente. Se surgir alguma coisa, resolve-se.
– No momento mais delicado que passou recentemente, teve algum medo?
– Não. Nós temos de acreditar na Ciência. Nada feito sem ela. Nunca tive medo, nunca chorei. Nada.
– Aceitou o que aconteceu e enfrentou?
– Isso. Muito naturalmente. Como na maratona. A nossa vida é uma maratona. E quem não a souber gerir, morre mais cedo. Ou tem mais dificuldade.
– 49 Anos volvidos, o país já lhe prestou a homenagem devida?
– Ao longo da minha vida, as coisas acontecem e de vez em quando há umas homenagens giras. Ainda agora nas Cavalhadas de Vildemoinhos houve uma. É com agrado que vejo a minha terra me homenagear desta forma.
– Que imagem quer deixar para o povo português?
– A minha. Sou tranquilo, faço coisas, mas nunca fui vedeta. E, acima de tudo, aceitei as regras do jogo.
Orlando Fernandes